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08 out 2023

Ligando os pontos: retomada Avaete e as conexões entre violência de Estado, agronegócio, pistolagem e operadores do direito

Esteban del Cerro[1]

Na manhã do dia 06 de outubro de 2023, a retomada do tekoha[2] Avaete[3] foi atacada com bombas e balas de borracha da Polícia Federal (PF), que atuava para cumprir mandados de busca e apreensão com base em Inquérito Policial distribuído na Justiça Federal. Casas foram invadidas e baleadas, crianças e idosas foram atingidas por bombas, celulares foram apreendidos e famílias ameaçadas e intimidadas, inclusive pelo uso de drones na área da retomada. A comunidade relata a circulação de carros particulares minutos antes da repressão desatada pela PF, alguns dos quais vinculados a ameaças de morte com armas de fogo na região. A retomada Avaete completou 5 anos de resistência no dia 1º de outubro e possui um histórico incessante de ataques e violações conduzidas pelos fazendeiros e pistoleiros que a circundam desde então e alternam produção de monoculturas de soja e milho. É neste local e em retomadas vizinhas que, desde 2018, o “caveirão rural” vem sendo utilizado, um trator blindado e modificado para inserir armas em suas laterais, sistematicamente mobilizado para destruir casas e atacar os Guarani e Kaiowá. Neste ano, o caveirão voltou a atuar contra a comunidade.

[Visão de satélite ampliada da Reserva Indígena de Dourados, retomada Avaete, fazenda de Allan Kruger e cidade de Dourados]

[Caveirão rural em ataque contra Avaete em 2021]

Apesar de diferentes mídias e a própria Polícia Federal veicularem notícias que afirmam que não houve feridos, ao menos uma mulher de 74 anos, Kuña Poty, uma das ñandesy (rezadora) da retomada de Avaete, foi atingida por uma bomba que queimou suas mãos deixando escoriações. Além disso, crianças e idosos foram atingidos por gás de pimenta e gás lacrimogênio. Uma moradora de Avaete relata que “quando eles chegaram atirando, as balas de borracha entraram na minha casa e só as crianças estavam lá dentro. O gás fez eles saírem na hora, tossindo. Estavam se preparando pra almoçar, enquanto eu buscava água”.

[As mãos feridas de Kuña Poty]

Depoimentos e registros fotográficos da repressão da Polícia Federal

Entrevistados para esta matéria, moradores de Avaete relatam o que sofreram durante a ação da Polícia Federal do dia 6 de outubro:

Kunumi Verá: Vieram 16 viaturas. Passaram 4 na aldeia atual, ficaram 14 viaturas aqui na Avaete. Entraram, vieram atrás da liderança, já chegaram apavorando, tirando celular deles. A gente não sabia disso, não sabia de nada. Veio também um carro da FUNAI e foi muito tiro hoje. Gastaram um monte de bala aqui. A gente não tem nenhuma arma, nos pegaram desprevenidos, nós não tínhamos nem flecha. Inclusive, tem bastante criança, tem bastante vovô aqui também. Faz dias que estão ameaçando o povo que mora aqui. Veio um carro Corolla, uns 4 carros particulares com eles também, a gente não sabe se é fazendeiro… porque eles vieram e primeiramente conversaram com os fazendeiros lá na frente e depois vieram aqui. A gente não sabe o que eles querem. Eles não podiam fazer isso, chegar atirando na gente. A FUNAI tem que nos avisar. Porque aqui não tem arma. Tá bem calmo agora, a gente estava bem calmo antes deles chegarem. Agora o povo que mora aqui tá revoltado, tão apavorado… a gente não sabe o que vai acontecer daqui pra frente. As autoridades que tão mexendo na causa indígena tem que ver rapidamente esse tipo de coisa. É perigoso demais pra gente. Inclusive, a gente tá passando fome, sede e tem que aguentar a pressão dos policiais aqui, da própria Polícia Federal.

[Que horas a Polícia chegou?] Eles chegaram as 9h da manhã. Olha o tanto de bomba de gás que estouraram aqui, o tanto de casco de bala… sem precisar! Porque ninguém ameaçou eles. Começaram a atirar do nada. Levaram documento, levaram celular, levaram mapa do nosso tekoha, passaram em cima do xirú… Eles derrubaram o xirú com a viatura. A ameaça aqui tá acontecendo todo dia. O carro particular passa todo dia ali mostrando arma pro povo. Já chegaram entrando, atirando. Primeiramente na casa do companheiro, com pressão, porque não tinha ninguém. Chegaram tomando celular, entrando de casa em casa, perguntando do documento. Não permitiram filmar, por isso que atiraram. Eles iam filmar e quem filmava levava tiro. Mas alguns conseguiram filmar. Quando o companheiro estava fazendo o registro, tomaram o celular da mão dele. Chegaram em 4, pegaram ele e tomaram o celular na marra da mão dele. Vieram buscando arma, mas onde tem arma mesmo é lá na chácara, na fazenda, todo tipo de arma. E eles sabem disso.

Eles entraram direto na nova retomada de Avaete, que aconteceu no início de setembro. Entraram um pouco por aqui e um pouco lá por baixo [na primeira retomada], onde a gente já estava. Um estava pescando, o outro foi buscar água, outro foi buscar alimento… pegaram de surpresa, ninguém sabia de nada. Tinha pouca gente nesse momento. Fotografaram nossas coisas. Tiraram foto do gerador de energia que tem ali… não sei por quê. Tiraram foto do poço.

Nós não aceitaremos mais Polícia Federal sem acompanhamento da FUNAI e Direitos Humanos aqui no território. Nós, Guarani e Kaiowá das retomadas, lideranças e rezadores, já fomos mortos muitas vezes. Eles têm que apreender o pistoleiro, não os indígenas Kaiowá e Guarani. Eles falam que a gente tem arma? Não tem! A gente não tem nem arroz pra comprar, nem feijão, nem mistura pra gente comer. A gente não tem dinheiro. Mas como vamos ter arma? Quem tem arma? Fazendeiro. Quem tem dinheiro? Fazendeiro. Vereadores. Quem está por trás disso são vereadores, com certeza. A partir de hoje não aceitaremos PF no nosso território. Nós Kaiowá e Guarani estamos sofrendo muita ameaça. Só esse ano já perdi contagem de quantos ataques aconteceram… Polícia Federal, Polícia Militar, pistoleiro, segurança privado e fazendeiro.

Eles acham que vão intimidar a gente com a arma, mas pelo contrário, encorajam a gente. A arma, quando atiram na gente, nos incentiva, encoraja a gente a lutar pelo que é nosso.

[Parte das bombas e balas recolhidas após o ataque da PF]

[Xiru [Yvyra’i], objeto sagrado Guarani e Kaiowá, atropelado pelo carro da PF]

[Buracos de bala em casa de família Guarani Kaiowá]

[Mãe e filho Guarani Kaiowá seguram bala de borracha utilizada pela PF]

Breve histórico da violência contra a retomada de Avaete

Somente entre agosto de 2021 e 2022, segundo dossiê produzido pelo Observatório da Kuñangue Aty Guasu (OKA)[4] -, Avaete sofreu 16 ataques, desde repressão e truculência da Polícia Militar – que atua como segurança privada dos fazendeiros, fato comum no Mato Grosso do Sul -, tentativas de assassinato por seguranças privados, pistoleiros e fazendeiros, derrubadas e queimas de casas, destruição de plantações (cultivo de alimento) até ataques químicos, realizados através da aplicação de agrotóxico por máquinas agrícolas contra casas e pessoas da retomada. O relatório da OKA aponta, ainda, que “diversos moradores foram feridos em distintos graus de gravidade: uma pessoa perdeu um olho; ao menos três pessoas foram baleadas por armas de fogo, sendo atingidas no ombro [1 idoso]; nas pernas [um jovem]; nas costas [um jovem], sendo esta vítima atualmente paralítica como resultado do ataque. Moradores de Avaete também relatam a ocorrência de um estupro feito por jagunços contra uma moradora, que se retirou da retomada após este acontecimento com medo de ser assassinada.”

O ataque do dia 06 de setembro de 2021, em especial, adquiriu maior visibilidade: foi quando a casa de uma ñandesy (rezadora) de Avaete foi incendiada as 11h da manhã por seguranças privados[5] e por Giovanni Jolando Marques que, de acordo com testemunhas e com o processo de prisão preventiva[6], estava junto ao fazendeiro na camionete utilizada, Allan Christian Kruger, cujas terras são sobrepostas a área reivindicada pelos indígenas de Avaete. Diferente do que divulgam as mídias de Dourados e região, Giovanni não é um mero “sitiante” ou “chacareiro”, senão um pistoleiro que detém contrato de arrendamento das terras de Allan Kruger.

O ataque incendiário sucede uma semana em que outras três casas haviam sido queimadas pelos seguranças privados. A empresa contratada para segurança é a empresa Miragem, que também atua como guarda dos reservatórios de água da Sanesul, empresa de saneamento do Mato Grosso do Sul, cuja água é destinada para os grandes condomínios de luxo de Dourados, enquanto na retomada e na Reserva Indígena de Dourados o acesso a água é cada vez mais difícil. A empresa Miragem LTDA também atua nas seguintes fazendas nas cercanias da Reserva: Fazenda Celeste, Fazenda Boa União, Estância Parque dos Eucaliptos e Fazenda Curral do Arame, essa última situada no outro extremo do Anel Viário e é sobreposta ao tekoha Apyka’i – que sofreu 7 despejos e mais de uma dezena de mortes relacionadas à luta pela terra e é reivindicado historicamente por Dona Damiana, hoje na beira da estrada[7].

Em 2023, se destacam 3 ataques, realizados às 23h do dia 14 de agosto e ao longo da madrugada do dia 15 de agosto, 12 de setembro (na madrugada) e dia 13 de setembro no início da tarde. Em agosto, na madrugada da agressão, as mulheres e crianças de Avaete foram ameaçadas de estupro pelos pistoleiros que realizaram os ataques, além de haverem sido monitorados por drones e enfrentado novamente a presença do caveirão, que retornou na madrugada do dia 12 de setembro. Uma ñandesy de 85 anos quase foi assassinada por tiros que passaram de raspão por seu corpo. Foi nesta circunstância em que ameaçaram os pistoleiros: “essa noite é o caveirão quem manda”. Abaixo, é possível visualizar imagens das casas incendiadas, projéteis e bombas usadas em agosto:

Em seguida, menos de um mês depois, em novo ataque realizado pelos pistoleiros com retaguarda da Polícia Militar, dois adolescentes menores de idade ficaram feridos e foram hospitalizados, como mostram as fotos abaixo:

As redes do terror agrário

O acontecimento de 2021 guarda importante relação com o ocorrido no dia 06 de outubro de 2023. O pistoleiro diretamente responsável pela queima da casa da ñandesy é Giovanni Jolando Marques, preso na ocasião e solto este ano. A ação da Polícia Federal, segundo fontes desta matéria, teria novamente indiciado Giovanni, possivelmente resultando em sua prisão novamente por ferir a tiros indígenas de Avaete em agosto de 2023. Nos ataques do dia 15 de agosto, “oito pessoas armadas invadiram e incendiaram as [15] casas da comunidade, obrigando os moradores a correr e a se esconderem nos matos da vizinhança para se protegerem dos disparos de arma de fogo” (DPU apud MORANDI, 2023).

Pamela Wernersbach, advogada que atua em defesa do pistoleiro Giovanni, também já atuou em favor de Allan Christian Kruger – proprietário da fazenda Santa Hilda, sobreposta à Avaete – em 2021, processo de homicídio qualificado. Entre os sócios do escritório de advocacia que Pamela trabalha – Azuma Brito Dehn Advocacia –, estão ninguém menos do que Felipe Cazuo Azuma, ex-presidente da OAB de Dourados (2013-2015) e o atual presidente da OAB de Dourados, Ewerton Araújo de Brito, formado Oficial-do-Exército em 2001. Felipe Azuma representa 3 dos 5 fazendeiros[8] acusados de organizar e executar o Massacre de Caarapó, ocorrido em 2016, quando o agente de saúde indígena Guarani Kaiowá Clodiodi de Souza foi assassinado a tiros durante o ataque das 40 camionetes que invadiram a retomada atualmente conhecida como Kunumi Poty Verá. Ele também participou da defesa do pistoleiro Giovanni Jolando Marques após sua prisão em 2021. No mesmo ano, em junho, um morador de Avaete foi torturado por 3h seguidas na madrugada por policiais militares, que alegavam – após invadir sua casa – buscar as armas que teriam sido tomadas da Polícia Militar durante o Massacre de Caarapó.

O advogado Ewerton de Brito, por sua vez, estava presente na primeira reunião da Frente Parlamentar em Defesa da Solução dos Conflitos entre Indígenas e Proprietários de Terra, formada em razão dos conflitos que ocorrem nas retomadas lindeiras à Reserva Indígena de Dourados como consequência da violenta atuação dos fazendeiros e das polícias. Na Frente Parlamentar, atuam vereadores como Rogério Yuri (PSDB), Marcio Pudim (PSDB), Elias Ishy (PT), Fabio Luis (Republicanos), Marcelo Mourão (Podemos). Na 1ª reunião, também esteve presente o Secretário de Justiça e Segurança Pública do MS, Antonio Carlos Videira, que possui relação com o Massacre de Guapo’y, ocorrido em 2022, quando a Polícia Militar assassinou Vitor Fernandes Guarani Kaiowá em um despejo ilegal.

No mesmo escritório de advocacia também atua Alberi Rafael Dehn Ramos que, junto com Felipe Azuma e Ewerton de Brito, defenderam o fazendeiro Laertes Alberto Dierings, que se tornou réu em 2021 por violação de sepultura e ocultamento de cadáveres de cemitério indígena Guarani e Kaiowá na retomada Pakurity: 80 corpos foram desaparecidos em 2013[9]. Laertes Dierings é sócio de Allan Kruger (diretor) na Coopasol – Cooperativa Agropecuaria Sulmatogrossense, que possui capital social total de 3 milhões de reais. Seu irmão, Cesar Roberto Dierings, já foi vice-presidente do Sindicato Rural de Dourados.

[Organograma das relações entre advogados, fazendeiros, sindicato rural e empresas]

Sobre o Sindicato Rural de Dourados, importante notar o conteúdo da “Nota de Agradecimento” do dia 13 de julho de 2021[10], onde agradecem “todas as Pessoas Físicas e Jurídicas que contribuíram com a participação da caravana de Dourados no Movimento Brasil Verde e Amarelo 2021, que aconteceu em Brasília/DF, no último dia 15”, entre estas pessoas, a família Dierings (Laertes e Cesar) e Allan Kruger. É de amplo conhecimento a participação reiterada dos Sindicatos Rurais no Mato Grosso do Sul em ataques contra comunidades Guarani e Kaiowá. Nos questionamos, a partir dessa informação, se estariam os mesmos fazendeiros associados envolvidos nos atos golpistas do dia 8 de janeiro de 2023. Ainda, é preciso seguir o rastro do dinheiro: qual a participação do Sindicato Rural de Dourados no financiamento da defesa jurídica dos fazendeiros em questão? Qual a relação do escritório de advocacia Azuma Brito Dehn e seus associados que presidem a OAB com o Sindicato Rural? Qual a relação entre estas redes com o terror agrário promovido contra as retomadas Guarani e Kaiowá? Para onde vai a soja produzida nesses territórios?


[1]  O autor, nascido na argentina, foi encontrado à deriva pelos Guarani e Kaiowá.

[2] Território ancestral Guarani e Kaiowá.

[3] A retomada de Avaete é dividida em Avaete I e Avaete II e está localizada em um dos limites da Reserva Indígena de Dourados. No dia 06 de outubro, apenas Avaete I foi atacada. Entretanto, os demais relatos nesta matéria abrangem ambas partes, compreendendo o tekoha como um todo.

[4] O dossiê é intitulado “Terrorismo estatal-empresarial/privado, violações de direitos humanos e violência policial contra os Guarani e Kaiowá da região de dourados [ka’aguyrusu]”.

[5] O vídeo da queima da casa pode ser visualizado no seguinte link: https://cimi.org.br/2021/09/ataques-segurancas-privados-queimam-casas-guarani-kaiowa-dourados-ms/.

[6] Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/trf-3/1296699612/inteiro-teor-1296699613.

[7] A empresa de segurança privada GASPEM, fechada por sua comprovada relação com mortes, ameaças e torturas contra os Guarani e Kaiowá de diferentes territórios, atuou ostensivamente em Apyka’i antes de findar.

[8] Os fazendeiros acusados por organizar, articular e executar o Massacre de Caarapó são: Eduardo Yoshio Tomonaga; Dionei Guedin; Nelson Buainain Filho; Virgilio Mettifogo e Jesus Camacho.

[9] Mais informações em: https://www.brasildefato.com.br/2021/03/18/fazendeiro-do-ms-torna-se-reu-por-remover-cemiterio-indigena-e-ocultar-cadaveres.

[10] Disponível em: https://www.sindicatoruraldedourados.com.br/imprensa/imprensa/nota-de-agradecimento.

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